O que todos deveriam saber sobre a Inteligência Artificial no INEM 

No passado dia 11 de dezembro, a Ministra da Saúde anunciou um plano de refundação para o Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM). Uma das medidas apresentadas é integrar, na resposta do Centro de Orientação de Doentes Urgentes (CODU), sistemas de inteligência artificial. Aliás, em junho de 2023, António Lambeiro, então secretário-geral-adjunto da Administração Interna, já comunicara o uso de tecnologia baseada no ChatGPT, em períodos de maior solicitação dos serviços de emergência pré-hospitalar (SEPH). Esta implementação também estava prevista para 2025 e parece ser a mesma que a ministra anunciou há poucos dias. Assim sendo, levantam-se várias questões:

  1. O que podemos esperar da integração de inteligência artificial no INEM, tendo em conta os modelos disponíveis? 
  2. Como poderá a inteligência artificial ser integrada na resposta do CODU?
  3. O que poderá significar para a saúde da nossa população? 

Tempo de leitura estimado: 4 min

O que podemos esperar da integração de inteligência artificial no INEM, tendo em conta os modelos disponíveis? 

O objetivo deste tipo de tecnologia é mimetizar o pensamento humano através de modelos estatísticos, algoritmos, análise de dados, large language models e aprendizagem automática (machine learning) [1]. Estão disponíveis, com aplicação generalizada, dois tipos de inteligência artificial: preditiva e generativa. À primeira dizem respeito os sistemas que realizam previsões baseadas em comportamentos ou resultados passados. Este é o tipo de inteligência artificial utilizado para interpretar meios de diagnóstico imagiológicos ou resultados de testes clínicos. Já a inteligência artificial generativa assenta na aprendizagem de dados passados para gerar novo conteúdo (texto, imagem ou som). São exemplos comuns o ChatGPT ou outros chatbots [1].

Como poderá a inteligência artificial ser integrada na resposta do CODU?

Antes de mais, é necessário perceber por que surge a necessidade de otimização da resposta dos SEPH. Foram identificados vários problemas e destaco aqui três. 

Escassez de recursos humanos e materiais

A escassez de recursos humanos e materiais é uma questão complexa. A discussão acerca das suas causas não se enquadra no âmbito deste artigo.

Falta de adequação dos meios enviados às ocorrências

A falta de adequação dos meios enviados às ocorrências foi um dos problemas assumidos, no Parlamento, pela própria ministra Ana Paula Martins. Numa grande percentagem dos casos são acionados recursos com um nível de diferenciação superior ao necessário. Concorrem diversos fatores para este problema, tais como capacidade de comunicação, qualidade dos algoritmos disponíveis, entre outros. Relembro ainda que, dependendo da ocorrência, podem ser inicialmente despachados diversos meios: ambulâncias, motos, viaturas médicas de emergência e reanimação (VMER) ou helicópteros. Estes transportam recursos humanos mais ou menos diferenciados – equipas de bombeiros, técnicos de emergência pré-hospitalar, psicólogos, enfermeiros e/ou médicos. O seu envio é fluido, ou seja, pode estar sempre a sofrer mudanças, tendo em conta as informações que as equipas do terreno passam ao CODU. 

Elevados tempos de espera

Os elevados tempos de espera ocorrem quando as solicitações aos SEPH excedem a sua capacidade de resposta, como por exemplo em caso de greves, acidentes com múltiplos veículos, desastres naturais, etc. Nestas circunstâncias, o CODU pode demorar vários minutos a atender uma chamada [1].

Ora, a inteligência artificial é capaz de analisar, em tempo real, a conversa telefónica, tendo em conta padrões do discurso e descrição da situação. Os dados recolhidos e integrados despoletam uma série de perguntas adicionais que o operador do CODU deverá seguir de forma a otimizar a resposta ao evento [1]. Além disso, é possível cruzar a previsão do tempo de viagem até ao local com o “nível” de solicitação das ambulâncias para criar planos espaciais de cobertura pelos SEPH [4]. Estes sistemas também podem transcrever a informação extraída durante o telefonema e traduzir o discurso imediatamente, de modo a acelerar o pedido de ajuda [1].

O que poderá significar para a saúde da nossa população? 

A resposta é que não sabemos. Não existem estudos científicos que avaliem o impacto da utilização de inteligência artificial na morbimortalidade dos doentes socorridos. Contudo, dispomos de um conjunto de evidência que aponta para o benefício dos modelos de inteligência artificial testados na:

  1. Eficiência da triagem;
  2. Alocação de recursos;
  3. Encurtamento da resposta dos SEPH [1,2,3].
Notas de precaução

Em primeiro lugar, necessitamos de estudos em larga escala que reflitam a variabilidade e complexidade da saúde das populações e dos sistemas de saúde.

Além disso, a esmagadora maioria dos estudos são retrospetivos, ou seja, analisam os dados passados e avaliam a capacidade de o modelo prever ou sugerir ações, comparando-as com a resposta efetiva do sistema instituído. Isto significa que temos pouca informação sobre como se comportarão num contexto real. O dinamismo e heterogeneidade das situações aliados à complexidade da interação operador/programa poderão trazer desafios não antecipados.

Por exemplo, os profissionais de saúde mostram-se reticentes em aceitar previsões realizadas por inteligência artificial sem que o racional lhes tenha sido explicado, principalmente em cenários de emergência [2,3]. São chamados de modelos de inteligência artificial opacos ou “caixas negras” (black boxes), devido a esta falta de transparência ou de explicabilidade dos processos. Assim, surgem questões éticas e médico-legais, tais como tomada de decisões clínicas baseadas em dados enviesados, e dificuldades na responsabilização por resultados adversos [4]. Estão já a ser desenvolvidos modelos de inteligência artificial que explicam o método usado na concretização de uma proposta, possibilitando a identificação de vieses e a tomada de decisão em consonância.

Outras considerações éticas – privacidade de dados e consentimento informado – necessitam de discussão e soluções.  

Conclusão

Em suma, os programas de inteligência artificial poderão otimizar os recursos do INEM e auxiliar o CODU na triagem de doentes, tornando-a mais célere e precisa. No entanto, não temos a certeza do impacto na saúde dos cidadãos. Além disso, não servirá de bote de salvação para todos os problemas que os nossos SEPH enfrentam. A utilização de inteligência artificial no INEM suscita, ainda, várias questões éticas e médico-legais que devem ser debatidas em sociedade, bem como analisadas pelos decisores políticos e empresas responsáveis por estes programas.

(Laura Gonçalves exerceu funções como médica na VMER do Centro Hospitalar Universitário de Santo António, com término de funções em 2023. Sem conflitos de interesse.)

Referências

[1] Clark M, Severn M. Artificial Intelligence in Prehospital Emergency Health Care: CADTH Horizon Scan. Ottawa (ON): Canadian Agency for Drugs and Technologies in Health; August 2023.

[2] Tyler S, Olis M, Aust N, et al. Use of Artificial Intelligence in Triage in Hospital Emergency Departments: A Scoping Review. Cureus. 2024;16(5):e59906. Published 2024 May 8. doi:10.7759/cureus.59906

[3] Chee ML, Chee ML, Huang H, et al. Artificial intelligence and machine learning in prehospital emergency care: A scoping review. iScience. 2023;26(8):107407. Published 2023 Jul 17. doi:10.1016/j.isci.2023.107407

[4] Carmo, D. (2024, Dezembro 11). Ministra revela que INEM vai passar a usar inteligência artificial no CODU e afasta privatizaçãoPÚBLICO. https://www.publico.pt/2024/12/11/sociedade/noticia/saude-2115229 

[5] Lusa. (2024, Novembro). INEM diz que tempo médio de espera no CODU é agora de 19 segundos. PÚBLICO.  https://www.publico.pt/2024/11/09/sociedade/noticia/inem-tempo-medio-espera-codu-19-segundos-2111250

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